

Christian Pruks
christian@avmag.com.br
O conceito de Qualidade seria completamente subjetivo?
Esse “o bom é aquilo que te agrada” é a pior coisa já pensada e proferida pelos ‘relativizadores’ de tudo em um universo onde não há nada de ‘errado’, onde tudo é certo, onde ‘vale tudo’…
Li esse erro mais de uma vez ao longo dos anos, em inúmeros fóruns e grupos de discussão de áudio, como sendo uma resposta passável e ‘inteligente’ para alguém que pedia esclarecimentos sobre a qualidade sonora de um equipamento ou acessório. E essa resposta é terrível e intolerável para mim – é literalmente um desserviço a quem procura esclarecimentos, e à Audiofilia como um todo.
Porque a Audiofilia é, por definição, uma busca por algo que espelha padrões de Qualidade mais altos – e, como eu já disse antes, é algo que demanda estudo, conhecimento e compreensão, que demanda alguma Referência e alguma Metodologia.
Você não entra em um Clube do Trem Elétrico achando que pode por uma banana sobre rodas para percorrer os trilhos, que o vagão pode estar latentemente fora da escala da maquete, ou que a locomotiva pode cair em todas as curvas. Padrões de Qualidade existem, podem e são definidos.
Mas são eles assim subjetivos? São eles definidos pelas necessidades do mercado, do consumidor?
Se um mercado inteiro comedor de macarrão, passar a preferir a massa mais simples e que quase sempre resulta toda borrachenta, ou mole, e meio sem gosto, em vez de preferir (ou pelo menos entender) que uma massa feita com uma farinha melhor, ‘grano duro’, é melhor no resultado final do prato, em sabor e textura, então o que é considerado ‘de Qualidade’ passaria a ser o macarrão barato? Não.
Mas, se o chamado ‘Padrão de Qualidade’, como diz o autor e especialista americano em Qualidade, Philip Crosby (autor do livro Quality is Free, de 1979), é uma função da expectativa do consumidor com as necessidades do produto quando foi especificado – então uma locomotiva que tomba em todas as curvas a 60km/h, serviria para um consumidor cuja expectativa e necessidade é que o trem ande a 20km/h.
A questão é que minha discussão não é quanto à semântica da Qualidade, ou ao conceito dela do ponto de vista da indústria criando produtos e serviços – isso é tudo muito bacana e válido, como é todo o trabalho de Philip Crosby.
Minha discussão é, para começar: não tem ninguém que não preferiria pagar um pouco mais para o trem ir à 60km/h em vez de 20 – e isso implica em um trem melhor. E, não faz tanto tempo assim que os trens eram muito mais desconfortáveis do que hoje, com seus assentos em madeira. Foi a necessidade, ou os padrões de qualidade do público usuário de trens que subiram, que mudaram? Ou esse público sempre teve uma mínima consciência de que era ‘melhor’ chegar mais rápido em seu destino e sem as nádegas e a coluna doendo pelas ripas de madeira. Eu sigo mais essa segunda hipótese.
Se a ideia é que a Qualidade é sempre definida pelos requisitos e expectativas, e eles são mutáveis, então para mim claramente implica que existem padrões mais altos a serem almejados, e alguns com enorme clareza pois, de novo: perguntem para todos os usuários do trem, e a maioria facilmente terá a consciência de que chegar mais rápido e mais confortavelmente é, obviamente, ‘melhor’.
Ou seja, existem Padrões de Qualidade claramente maiores em quase todos os âmbitos.
A Audiofilia é pior ainda que o Clube do Trem Elétrico citado acima, pois sua própria razão de existência é um Padrão de Qualidade bem mais alto, assim como um clube de comida gourmet exige, por definição, ingredientes e preparação de maior qualidade. Ou seja, de novo, qualidade não é tão ‘relativa’ assim – existe uma ‘maior’ e uma ‘menor’, baseando-se no nível de informação e conhecimento do consumidor, e que expectativas podem muito bem ser maiores do que o ‘nivelamento por baixo’ costumeiro geral (baseado cruamente na relação custo/benefício).
Ainda segundo Crosby, a medição do que é Qualidade está na conformidade com as especificações e requisitos do produto. Mas, para os Objetivistas de plantão, é preciso lembrar que, na Audiofilia, Qualidade Sonora é, sim, um requisito – e dos maiores!
Crosby ainda diz que o padrão de performance a ser atingido, é suprir os requisitos de projeto com a menor quantidade de defeitos possível. Bom, se existe Qualidade Sonora, então a medição dessa não pode ser totalmente Subjetiva, assim como já ficou claro que medições de laboratório de áudio, e suas especificações escritas, não chegam nem perto de dizerem como um equipamento toca, qual sua Qualidade Sonora. E essa afirmação não é só minha opinião, é pelo simples fato de que nenhum Objetivista até agora conseguiu fazer medições de um equipamento dizerem se o palco é mais profundo ou não, se os instrumentos aparecem bem recortados, se eles têm texturas bem definidas ou ‘foscas’, se seus corpos harmônicos são de bom tamanho e condizentes com a realidade ou não, etc.
Segundo os princípios de Crosby, o cliente dita a qualidade do produto ou serviço. E eu diria que pode servir de guia, mas não ‘ditar’, pois seria uma visão simplista que deixaria de levar em conta até coisas com o marketing da criação de necessidade. E a ideia errônea de que ‘o cliente tem sempre razão’ pode levar a locomotiva a tombar na primeira curva.
Por isso, estaria certo dizer que a indústria Audiófila dita o que é a Qualidade e o que não é, e não o consumidor? Sim, e não.
‘Sim’, porque os produtos são feitos para suprir necessidades – no caso, a Qualidade Sonora.
E ‘não’, porque o audiófilo tem um papel a desempenhar, que é se educar quanto ao que realmente é Qualidade Sonora. Aqui a realidade não se adapta à pessoa, e sim o reverso, na maioria das vezes.
Pronto! Lá ver aquele gordo da revista falar de novo a mesma coisa: Referência! rs…
Audiofilia é um ramo muito especial, porque é uma representação eletrônica e artificial de algo real – o acontecimento musical, o som real dos instrumentos. É bem diferente de vinhos, porque esses não representam uma uva, esses são produtos únicos, onde a referência de um vinho é um vinho! E é diferente da cozinha gourmet, porque essa cria sabores e texturas que não existem nos alimentos originais separadamente – são resultado de processos químicos, de alterações.
E, ainda assim, a cozinha gourmet se beneficia um bocado de Referências: alimentos em seu estado original, outros pratos e preparações consagradas etc.
Como sempre, eu faço analogias com comida – pois essas são compreensíveis por todos (ou pela maioria).
A música gravada, mostrada pela luz da Audiofilia, tem um pouco de semelhança com a apreciação de vinhos, na medida que você precisa educar como seu cérebro interpreta e entende o que seus ouvidos ouvem, da mesma maneira que o paladar e o cérebro interpretam e apreciam um vinho. E tem muita semelhança com a cozinha gourmet, porque ela cria algo alterando um pouco – em alguns casos – a sonoridade original do instrumento musical.
Já ouvi argumentos que dizem que o som gravado não poderia ser comparado com o som original do instrumento, em muitas das gravações existentes, porque ele já teria sido muito alterado. E aí me lembro que, as pessoas que têm boa familiaridade com comida gourmet, percebem com certa facilidade se a mesma – por mais que tenha sido magnificamente bem preparada – é feita com ingredientes de alta ou baixa qualidade. E eu sigo esse pensamento: você não faz boa comida com ingrediente ruim, assim como não faz boas gravações com instrumentos ruins. Assim como não monta, avalia e regula um bom sistema de áudio com gravações que não sejam boas. Quem conhece o som de instrumentos reais, conhece.
O resultado e a utilidade de se ter Referência é simples assim.
A justificativa para não tê-la, sempre é: “não tenho acesso ao som dos instrumentos reais”. Acredito que em alguns lugares isolados, no mundo, isso seja difícil. Mas em muitas cidades (onde se vive, ou próximas), existem apresentações ao vivo de música acústica, como jazz, coral, MPB e clássica, desde o barzinho até a igreja, até teatros e auditórios. Ouvir isso, para mim, deveria ser um dos objetivos primordiais de todo audiófilo. O audiófilo que não o faz, é como um gourmet que se diz especialista e dá palpites para todo lado, mas que não conhece os ingredientes e temperos, e muito menos entende seu nível de qualidade.
Em matéria de indústria, de projeto e fabricação – e até em matéria de marketing geral de produtos e serviços – Crosby está certo. Mas a vida real, vista do lado do consumidor, é muito menos ‘preto no branco’, e não se encaixa com facilidade em sua doutrina, pois é muito mais fluída. Pois volto a afirmar que a maioria das pessoas tem, pelo menos, uma noção decentemente clara do que é ou o que seria algo de melhor qualidade, em comparação com tudo que consomem de produtos e serviços.
E aí voltamos para os nichos de alta Qualidade, como o da comida gourmet, da apreciação de vinhos, dos produtos feitos à mão, das viagens de luxo e – adivinhem vocês – da Audiofilia.
“O som bom é aquele que te agrada?” não é uma resposta que se dê para alguém dentro desse nicho. Não é um nicho de ‘vale tudo’.
Mas, a Audiofilia é, principalmente, cara? Sim, porém é possível ter um bom som sem gastar muito, assim como, com Referência e conhecimento, saber selecionar entre os equipamentos mais baratos, aquilo que soa realmente bem – e isso resulta em um prazer auditivo e um aproveitamento, compreensão e absorção da música, muito maiores.
Isso partindo do princípio que existe um amor pela música em todo esse processo – e não um amor por marcas, recursos, botões, displays e luzinhas.
Você tem dúvidas? Discorda? Concorda? É indiferente? Sinta-se livre para entrar em contato em: christian@avmag.com.br.